segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Noites altas

Naquele tempo, eram os pés de moleque que suportavam nossos pequenos passos, débeis pela angústia e de destino certo pelo hábito. A luz amarela despejada do alto dos postes destacava o resignado desfile de sombras nas paredes caiadas que emolduravam a ladeira. O silêncio daqueles ares frios abafava sons escapados de cada veneziana fechada, ecos da inquietação capitaneada por quotidianas lembranças amargas. Um abraço curto e fugidio, o trato ignominioso, as acusações pérfidas, gestos ferinos.

Naquele tempo, a torre elevava-se a alturas que impressionavam aos velhos e aos meninos. Temíamos todos a sinfonia do seu inalcançável campanário, trovões que regravam mais que nossas comezinhas tarefas, invadiam-nos, sem escusas, a nos dizer que nada se mantinha oculto. Aos pés da torre, contemplávamos as frágeis construções acomodadas sobre o mar de morros, encaixadas no sinuoso vale rasgado pelas águas barrentas que os antigos julgaram dignas do santo nome protetor daquela terra, onde tantos se atiravam a saciar apetites torpes.

Naquele tempo, enleavam-se nossos sentidos com a brisa de dama da noite, com a quietude pétrea, com o piar das corujas. A longa escadaria apartava-nos das surpresas que nos espreitavam em cada esquina. Agora não há mais precisão daqueles muitos degraus. Conheci outras serras, ouvi o dobrar de outros bronzes, enquanto à noite ainda te afliges entre os mesmos gigantes.

Nenhum comentário: