segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ainda vales ouro

Sim, ultimamente vens perdendo adeptos. Incômoda, tua mudez soa-lhes intolerável. Evitam continuamente a ti, mesmo quando estão sozinhos, apelam a todo artifício, modernas engenhocas que também privam terceiros de tua companhia. Encaremos a verdade, ficaste anacrônico! Tens imensa lista de concorrentes muito mais sedutores a esses pobres. Acaso não te ocorreste a ideia do quanto te tornaste inconveniente a todos eles? Eis que belos autômatos, absortos em sua loucura, sua aflição os fagocita sem qualquer oposição.

Mesmo eu, desde tenra idade teu entusiasta, admito haver provado uma gota da tua aridez de que tanto se queixam. Também conheci a tormenta com que costumas agitar-nos algumas noites. Todavia não permiti que se dissipasse a estima que tenho por ti, deixei-a encerrada naquele tosco baú ocasionalmente aberto se nos encontrávamos pelas trilhas da vida. Aquiesci, então, com outra chance, e a recompensa foi sublime! Trouxeste-me valiosíssimo tesouro, quem eu já não procurava há muito, voz que demorei a reconhecer e que levou ao colapso toda resistência que ainda se armava. Generosa, sorriu-me nos olhos. Amorosa, tocou-me o peito. Acolhedora, reconfortante abrigo em que novamente descansei. Agora percebo com maior clareza – tu que me levaste a ela.

Como entender os que aparentam uma pontinha de orgulho em te expulsar até das madrugadas frias desta metrópole? Insaciáveis, já tentam banir-te das vilas cravadas nas serras mais remotas. Néscios! Encaro a todos pesaroso. Respeitarei, contudo, sua decisão de continuarem a ferir seus ouvidos.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Tempo (km)

E como nos deixamos absorver por nossas obrigações quotidianas, que demandam cada vez mais horas de nosso dia e mais sábados e mais domingos, comumente levamos imenso susto quando algum acaso nos atira à cara indícios da passagem do tempo. Às vezes os amigos mandam emails sugerindo links para comerciais de nossa infância no YouTube. Um dia o professor se dá conta de que seus alunos foram alfabetizados na época em que ele entrara na universidade. De repente, o filho que viste nascer põe-se de pé e vence alguns metros da sala sozinho e sem escoras.

Há quem dê à expressão metafórica "caminhos trilhados na vida" um sentido mais literal, e mede suas experiências em km rodados. Esses costumam se assustar com a passagem do tempo ao olharem o hodômetro do carro. E cada quilometragem redonda é como se fosse uma idade marcante. Eu ainda não cheguei a esse extremo, mas confesso que abro um sutil sorriso quando vejo exposto no painel 10.000km, 20.000km, etc. Infelizmente deixei passar a marca dos 50.000, mas a foto dos 51.000 ficou bonita assim mesmo. Se eu fosse judeu, até poderia me resignar dizendo que foi melhor assim por causa da hora em que a foto foi tirada. Mas confesso que no momento do 50.000 não havia condições de brecar o carro e documentar o evento.

No histórico, momentos de gozo, outros de choro, conselhos dados, alguns recebidos, madrugadas frias, sol esturricando, maresia, alto de serra, verdades doces e amargas, asfalto impecável, algum atoleiro, granizo barulhento, luar de cinema, água com gasolina, bicicleta pendurada. E por que as pessoas se incomodam tanto quando contemplam sua própria idade?

sexta-feira, 5 de junho de 2009

E aí, foi bom pra você?


Podemos ter a sorte de trabalhar na área do conhecimento em que nos formamos - sim, hoje isso é privilégio - ou em uma instituição que nos agrada, mesmo assim é comum nos delegarem, de vez em quando, um abacaxi incômodo de se descascar. Então, seja porque não há mais ninguém disponível que o assuma, ou porque seremos regiamente pagos pelo trabalho extra, ou simplesmente porque temos dificuldade em falar 'não', passamos a dedicar boas horas do nosso dia à tarefa.

Quando se trata de um trabalho que atropela totalmente nosso planejamento, por mais aflição que isso possa nos causar, podemos encarar como um estímulo para concluí-lo o quanto antes. Nesse caminho, percebemos que a paciência é uma virtude de contínuo aprendizado e aperfeiçoamento.

Quem dera eu fosse um sujeito assim tão elevado, ao contrário, quando penso que aprendi a abstrair o que não me agrada, eis que minha gastrite vem confirmar o que um professor proferiu sobre minha médica, "Não é café que te faz mal ao estômago". Em geral se opta por esse segundo caminho, o do desgaste. Todavia sou forçado a admitir que, de uns tempos pra cá, venho conseguindo notas um pouco mais honrosas nessa disciplina.

E, passado o tempo necessário, reparamos que o abacaxi está devidamente descascado, cortado e pronto para servir. Podemos enfim voltar à vaca fria, provavelmente não sem alguns dissabores, mas sem dúvida com mais bagagem, na cabeça e no espírito.