quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Multar para educar ou para arrecadar?

Nos últimos dias, ouvi queixas de dois professores sobre a fiscalização recém implantada na cidade para multar os motoristas que desobedeçam ao sinal vermelho nos cruzamentos durante a madrugada. Um professor não conhece o outro, o primeiro explicitara ira, o segundo construiu fina ironia. Todavia tinham em comum a incompreensão da postura do Poder Público para com os motoristas.

Quem fura, paga. Quem não fura...
Até pouco tempo atrás, a própria Polícia Militar recomendava que se evitasse permanecer parado nos cruzamentos entre a meia-noite e as seis da manhã, a fim de se evitar abordagem de assaltantes. Mesmo que o motorista tivesse o azar de ser flagrado por algum agente da Companhia de Engenharia de Tráfego "furando o sinal", dificilmente ele receberia multa. Este ano, em vários cruzamentos foram instalados equipamentos que registram os carros que desobedecem ao sinal de parada, mesmo nos horários de pouco movimento e maior risco de assalto. A multa é de R$191,54. Agora o motorista se vê em outra encruzilhada além daquela por onde trafega: ou ele reza para que o sinal verde apareça a tempo de sua vida manter-se a salvo, ou reza pela benevolência de quem julgar procedente o recurso que ele queira impetrar.

Ontem eu me lembrei da polêmica mudança de horário de funcionamento das feiras livres ordenado pela Prefeitura de São Paulo no início do ano enquanto conversava com um amigo sobre o que deve motivar o Poder Público a usar um instrumento punitivo como as multas. Os feirantes foram obrigados a desmontar suas barracas até as 12:30, sob pena de serem multados e até suspensos. Ninguém entendeu o intento da administração municipal com a medida, que ocasionou reclamação tanto de compradores - que principalmente nos finais de semana não queriam se apressar em fazer a feira - como de feirantes - que gastam parte razoável do tempo para montar e desmontar suas bancas. Como de fato nada justificava a mudança e os protestos eram muitos, o prefeito teve de rever a determinação.

Além desses dois exemplos, outros bem servem para mostrar como o Poder Público subverte a finalidade da multa, empregada meramente como um instrumento de arrecadação, em vez de um mecanismo que induza o comportamento dos cidadãos. Trata-se de uma postura tão consolidada em nosso país que eu a imaginava com origem bastante antiga. Será que seguidas gerações foram moldadas culturalmente para se habituar a esse paradigma?

Nada como uma visita aos sebos para aumentarmos nosso cabedal. A um despretensioso folhear de exemplares amarelados pelo tempo e encardidos de poeira, acabamos por descobrir algumas curiosidades da vida política brasileira. Ano de 1556. Vila de Santo André da Borda do Campo, fundada 3 anos antes por  João Ramalho, localizada próxima à vila de São Paulo. As decisões da vila eram tomadas não por João Ramalho, mas pelos vereadores reunidos na Câmara ou Casa do Conselho. À época, as vilas não tinham prefeito, esse cargo só surgiu no Brasil, nos moldes que conhecemos hoje, em 1930. O Conselho era presidido por um juiz, denominado Juiz Ordinário ou juiz de dentro, espécie de prefeito naquele período. Segundo Viriato Corrêa, no livro Terra de Santa Cruz: Contos e Crônicas da História Brasileira, o ordenado do juiz ordinário da vila de Santo André era de 800 réis por ano, o que lhe permitia uma vida de príncipe em comparação aos demais moradores. Os vereadores não recebiam salário, mas o Conselho não se reunia com frequência, passavam-se semanas, até meses, entre uma sessão e outra. Todavia, se um vereador não comparecesse, era multado em 1 tostão, o equivalente a 80 réis.

Ou seja, o vereador que se ausentasse pagava, em 1556, multa equivalente a 10% do ordenado anual do juiz ordinário. À primeira vista, tem-se a impressão de que, na vila de Santo André, zelava-se com muito empenho para que os vereadores cumprissem bem suas responsabilidades. Mas havia outras intenções camufladas por trás de tanto zelo.

Na vila de João Ramalho,
nem o juiz tinha salário
para pagar as multas.
A vila era pobre, o ordenado dos moradores era muito apertado. Contudo, "o leitor se escandaliza diante da disparidade das multas, comparada com o valor do dinheiro naquela longínqua quadra quinhentista". As menores multas eram no valor de 100 réis. O forasteiro que entrasse na vila com seus pertences para nela morar sem licença pagava 500 réis. O morador que se retirasse da vila sem licença pagava 500 réis ao voltar. Era necessário recolher o gado ao curral ao fim do dia para evitar que ele danificasse as roças ou que fosse atacado pelas tribos que se opunham à colonização; o morador que não recolhesse o gado pagava 100 réis por cabeça. Como os lavradores saíam para trabalhar na roça, as crianças e os enfermos ficavam sozinhos em casa, expostos, portanto, aos ataques inimigos. A Câmara, assim, designava turmas de lavradores que iam para a roça e turmas que ficariam guardando a vila; quem desobedecesse ao revezamento era multado em 150 réis. Relembrando: o maior salário da vila, o do juiz, era de 800 réis por ano.

Chama a atenção do autor não o rigor das leis, que eram necessárias frente às ameaças de toda natureza que a colonização enfrentava naqueles seus primórdios. O que se destaca é "o extorsivo vulto das multas que se impõem ao povo". Ao final, sua opinião é incisiva: "Tem-se a impressão de que a municipalidade, não podendo arcar com os encargos normais por falta de numerário, quer arrancar, seja como for, o pêlo do povo. [...] Se se não extorquir o povo, os cofres municipais nunca terão dinheiro."

Câmara de Vereadores de S.Paulo
Uma rápida busca na internet nos informa que, em abril de 2009, na cidade de São Paulo, o salário mensal do prefeito era de 12 mil reais, e o de vereador, 7 mil reais. As sessões ordinárias da Câmara Municipal de São Paulo acontecem às terças, quartas e quintas. A multa por ausência do vereador equivale a 1/20 do salário, conforme Artigo 124 do Regimento Interno. Duas contas rápidas e concluímos que, em 2009, o vereador que se ausentasse pagava multa correspondente a 0,2% do ordenado anual do prefeito.

Ora, a Câmara tem sessões 3 vezes por semana, o que dá algo entre 13 e 14 sessões por mês. O desconto de 1/13 guarda apenas 180 reais de diferença para o de 1/20, é pouco frente ao salário de 7 mil, que não considero absurdo. Absurdo é não haver preocupação sequer em se adotar uma medida coerente para quantificar a multa ao vereador que se exime de sua obrigação.

É lamentável constatar que não apenas a municipalidade permanece aplicando multas como forma de saciar seu furor arrecadatório, como também a boa conduta dos vereadores deixou de ser merecedora de rígida cobrança por parte da sociedade. Para fins de arrecadação, há impostos e taxas. O caráter da multa é mais educativo ou punitivo, como forma de impedir atitudes consideradas danosas ou indesejáveis do ponto de vista social. Pioramos desde João Ramalho. Hodiernamente, quando se multa para "educar" nossos representantes, a mão é suave como uma carícia.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Noites altas

Naquele tempo, eram os pés de moleque que suportavam nossos pequenos passos, débeis pela angústia e de destino certo pelo hábito. A luz amarela despejada do alto dos postes destacava o resignado desfile de sombras nas paredes caiadas que emolduravam a ladeira. O silêncio daqueles ares frios abafava sons escapados de cada veneziana fechada, ecos da inquietação capitaneada por quotidianas lembranças amargas. Um abraço curto e fugidio, o trato ignominioso, as acusações pérfidas, gestos ferinos.

Naquele tempo, a torre elevava-se a alturas que impressionavam aos velhos e aos meninos. Temíamos todos a sinfonia do seu inalcançável campanário, trovões que regravam mais que nossas comezinhas tarefas, invadiam-nos, sem escusas, a nos dizer que nada se mantinha oculto. Aos pés da torre, contemplávamos as frágeis construções acomodadas sobre o mar de morros, encaixadas no sinuoso vale rasgado pelas águas barrentas que os antigos julgaram dignas do santo nome protetor daquela terra, onde tantos se atiravam a saciar apetites torpes.

Naquele tempo, enleavam-se nossos sentidos com a brisa de dama da noite, com a quietude pétrea, com o piar das corujas. A longa escadaria apartava-nos das surpresas que nos espreitavam em cada esquina. Agora não há mais precisão daqueles muitos degraus. Conheci outras serras, ouvi o dobrar de outros bronzes, enquanto à noite ainda te afliges entre os mesmos gigantes.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Os frutos de cada estação

A tarde de hoje seguia modorrenta e a reunião apática. Durante o providencial intervalo para o café, tomei a esmo uma das revistas de variedades dispostas sobre a mesinha de centro da recepção. Interessei-me ao ver que um dos artigos era assinado por uma amiga, que expôs em algumas linhas o que significou pra ela chegar aos 30 anos. Nada do tom jocoso com os clichês relativos às preocupações femininas nessa etapa da vida, nada da sutil amargura por não ter realizado os planos que almejara em sua adolescência. Ela registrava apenas o doce sabor do contínuo aprendizado do qual só nos damos conta vivendo cada fase da vida.

A reunião terminou e pude conferir os sms que recebera durante a tarde cinzenta. Em um deles, um amigo lembrou-me de uma troça dos nossos tempos de graduação, tempos esses não tão distantes assim, não sou tão velho quanto o uso do substantivo troça pode sugerir ao leitor. Como não entendi a brincadeira na hora, perguntei do que se tratava, ao que ele me respondeu estar apenas relembrando "os bons(?) tempos". Cogitei em escrever de volta "É, bons tempos que não voltam mais", mas a remeter-lhe um lugar-comum, melhor seria recolher-me ao silêncio. O diabinho sugeriu-me "Como assim bons se era uma dureza só?", o que me pareceu meio egocêntrico. Julguei que um simples "Ah, meu amigo, eram bons tempos" expressaria, na brevidade de um sms, o sentimento de que, não obstante as adversidades e as angústias, ganhamos muito e desfrutamos o que, dentro do possível, tivemos vontade.

Ao chegar em casa, notei na caixa de correio uma resma de papeis à minha espera. Em meio às corriqueiras contas a pagar, muita propaganda de candidatos a deputado. Embora já tenha definido em qual candidato à Assembleia votar no próximo domingo, resolvi ler os dois folhetos que relatavam a atuação dos candidatos na atual legislatura. Nisso me detive em frente à minha porta, santinhos à mão esquerda, chaveiro na direita. Despertei daquilo com passos vindos da escada. O vizinho chegou e ainda me viu entretido com os santinhos. "Então abarrotaram sua caixa também?", "Eles precisam dar um fim nisso até amanhã, não é?", "Mas esse inferno termina domingo". Concordei com um "Graças a Deus!", e na hora atentei para meu equívoco. Em outros tempos, também não tão distantes assim, era um anseio de quase todos no país que vivêssemos o clima de uma campanha eleitoral, as discussões abertas, o questionamento de propostas e, principalmente, a livre escolha de nossos representantes. Não havia a profusão de santinhos, contudo vivia-se sob outras restrições.

Os 30 anos são piores que os 20? A vida universitária é boa se comparada à fase pós-formatura? As campanhas eleitorais são intoleráveis a ponto de darmos "Graças a Deus" quando se encerram? Não podemos nos esquecer de que cada época nos reserva asperezas, assim como cada estação seus frutos. Aproveitemos, pois, o fruto que ora colhemos, obtido a partir de um semear de muito sacrifício.

sábado, 8 de maio de 2010

Besouros que ainda não sabemos encontrar

Cheguei à avenida Paulista com antecedência de vinte minutos. Tanta precaução fora motivada pelo temor de enfrentar um congestionamento inesperado como o que causou meu atraso na semana anterior. Decidi aproveitar aquele quarto de hora com um saboroso café na companhia do Loyola Brandão. Saquei da mochila uma coletânea de crônicas suas e iniciei a leitura de "O raro besouro que abre portas", aberta ao acaso.

Narrativa singela de um encontro do narrador com um garoto que brincava na calçada com um besouro-cadeado. Lá pelas tantas, o cronista deixa escapar que estava em busca de um besouro que abrisse corações. Enquanto sorvia meu expresso deliciosamente amargo, refleti sobre aquela confissão; que coração ele tanto queria aberto? O de uma mulher ainda resistente a suas investidas? Ou o seu próprio, inescrutável? Seriam os de amigos próximos, vizinhos, moradores desta cidade que, se deixarmos, pode nos conduzir a um crescente isolamento? Reparei que, no balcão, alguns clientes usavam fones de ouvido. Na verdade, eu era o único dos quatro que não os portava.

Minha reflexão sobre o casulo em que os urbanoides nos envolvemos foi interrompida pela chegada de uma mulher a arrastar consigo a filhinha. Na outra mão, as compras na butique de grife. Dirigiu-se à atendente com artificial intimidade:

- Oi, amada, eu quero aquele seu café divino.

A funcionária mantinha a sobriedade como que acostumada àquele tipo de tratamento.

- Pois não. A senhora deseja puro ou com leite?

A criança tocou levemente a perna da mãe:

- Mãe, você vai comprar o chocolate?

- Linda, eu quero puro, agora me ajuda, ela quer um chocolate. Mas raciocina comigo, amada, é melhor eu levar o bombom ou um tabletinho?

- A senhora pode ficar à vontade para escolher.

- Mãe, leva o bombom.

- Quieta, deixa a mãe escolher! Amada, tá vendo só, ela insiste no chocolate. Sabe como é apetite de criança. Hoje ela não quer comer nada, amada, só almoçou porque prometi um doce.

- Aqui está o café da senhora.

- Ai, amada, esse cheirinho de café é uma coisa! Vou te dizer, linda, eu não fico um dia sem ele.

- Mãe, e o bombom?

- Sossega antes que eu te leve embora, hein. Amada, você tem adoçante? Você não acredita, linda, mas eu engordo só de pensar em açúcar. Amada, você me vê então o bombom?

- Pois não, senhora. Aqui está.

- Obrigada, amada!

E voltou-se à filha:

- Agora pegue o chocolate, pegue, e chega de doce por hoje.

Eu me flagrei incomodado com tanta mesura sem lastro, como se eu fosse aquela atendente. Ela já atendia outro freguês que se aproximou. Ao longe, notei a menina levada pela mãe. Uma segurava seu bombom quase sem alegria, a outra conferia frenética os novos casacos expostos na vitrine. E, tal como o Loyola, desejei naquele instante um besouro que abrisse corações.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Notas esquecidas no baú I

Antigamente, tinha sabor do provisório. De duas formas. Sabia que, dali em breve, narraria as aventuras acompanhado de café-com-leite, bolo e biscoitos. E - melhor que isso - embora o derradeiro dia fosse data incerta, sua chegada era inevitável e traria consigo o término das deliciosas andanças. Partia-se de lá com entusiasmo, e de cá com apetite pelo devir.

Agora, lá fora, o deserto. A cidade, uma monótona fotografia, a muito custo se notam as sutis reinações de Cronos, denunciadas pelo alternar teimoso dos verdes, amarelos e vermelhos. Parte-se de lá com entusiasmo, e de cá com o opaco e arrastado aspecto do Arrudas, resignado em direção a outras bandas.

segunda-feira, 22 de março de 2010

"...on the road again"



Súbito o caminho plano, larguíssimo e bem comportado surpreende a ti, sinuoso e estreito, um amontoado de buracos. Não fosse o breu da noite – bem sei – haveria maior confiança em prosseguir. Os faróis só se prestam para decisões imediatas.


Teus olhos buscam sinal de algum destino, conhecido ou não, que ao menos torne plausível tal jornada, todavia o mato é alto, oculta as orientações que esqueceram à beira da estrada. És incapaz de distinguir qualquer uma delas.


Teu combustível, a inesperados e fugazes instantes, transmuta-se, vences cada quilômetro ora com a velocidade da precaução, ora com a inércia dos resignados.



Não obstante as asperezas, a despeito das sombras, quando menos estás a esperar, teu horizonte tinge-se de novas cores, combinações que há tempos te esqueceras de contemplar. Ao fim de uma curva, atrás dos morros, os primeiros raios da manhã e o teimoso afã de alcançar o que propuseste ao partir.


Eis que te vês, de novo, na estrada.

domingo, 31 de janeiro de 2010

O dia que, enfim, chegou

É irresistível, eu não poderia deixar de registrar uma linha que fosse sobre a apresentação do Metallica ontem à noite no Morumbi. E como qualquer tentativa de relato que eu fizer não conseguirá transmitir uma noção sequer primária, ficam apenas umas breves impressões, resumido comentário deste escriba sobre um show que foi inteiro bom demais da conta.

Foram 2 horas ao longo das quais a banda conduziu o show e o público com maestria, a começar pela ordem das 18 músicas escolhidas (fizemos as contas enquanto vencíamos a pé o caminho do estádio ao carro). Ressalto aquelas nas quais o público respondeu tomando parte no espetáculo. Só o mais estoico fã conseguiria resistir às concentradas doses de Metallica e não integrar aquele coro de 68.000 vozes, que explodiu pela primeira vez no refrão de 'For Whom the Bell Tolls', ainda uma pequena amostra do que viria, mas que já imprssionava.

Aos primeiros acordes de 'Sad but True', que já me deixaram com o coração na boca, pensei 'Agora esse povo não vai deixar passar um verso'. Não deu outra. Troço lindo! (-: E ainda não seria o apogeu. 'Master of Puppets' também empolgou muito. Mas a catarse veio mesmo com 'Enter Sandman'. O coro uníssono, a plenos pulmões, braços agitados, o rox se manifestando, clímax perfeito para encerrar a primeira parte.

Em alguns instantes, igualmente memoráveis, o povo cantou mesmo quando não havia versos a entoar, apenas acompanhando as guitarras. 'Fade to Black' foi um desses momentos. Bonito demais!

Os momentos de êxtase contrastaram com outros em que o público parecia se conter. Foram bem menos pessoas que acompanharam, por exemplo, as 4 músicas do 'Death Magnetic', isso ficou muito evidente, exceção feita (mas não tanto assim!) a 'The Day That Never Comes', que nem acho uma das melhores do álbum. E mesmo nessas ocasiões, ninguém se dispersava, a julgar pela imensa quantidade de pontos luminosos produzidos pelas telas das câmeras digitais em ação e que, vistos de lá das cadeiras, pareciam formar várias constelações em meio à escuridão da pista.

Algumas surpresas cênicas foram reservadas para 'One' e 'Enter Sandman', com pirotecnia e uns lança-chamas que literalmente esquentaram o ambiente. O meu irmão ficou atento às guitarras e contou quantas foram utilizadas ao longo da apresentação, 6 pelo James Hetfield, o Kirk Hammett foi mais modesto, 4 apenas :-P

No bis, a plateia, conhecedora dos shows do Metallica, pediu em uníssono por 'Seek & Destroy'. A banda atendeu o clamor e, novamente, a participação do público, já iluminado pelos holofotes do estádio, impressionou, encerrando bem a noite. Valeu a longa espera desde o show cancelado em 2003. Valeu muito mesmo! (-:

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

E as margens plácidas?

Nesses dias típicos de verão do Sudeste brasileiro, jornais publicam quase aos borbotões a catástrofe urbana. Sobram análises de especialistas, nas quais poucos tocam de fato com o dedo na ferida, também não é essa a preocupação deste post. Mas muito se comenta sobre a invasão das áreas de várzea que ocorreu nesta capital quando se noticia o transbordamento dos rios Tietê e Pinheiros a impedir o trânsito pelas Marginais. Acho engraçado que as matérias relacionem invasão das várzeas só com os grandes rios que cortam a cidade - aqueles dois e também o Tamanduateí, o Aricanduva, o Pirajuçara, basicamente. Ué, e tirando um ou outro corguinho de bairro, tem mais? Cerca de 1500 mais ou menos. E onde estão? Ocultos sob nosso sistema viário e nossas edificações.

Os jesuítas fundaram o tosquíssimo Colégio de São Paulo dos Campos de Piratininga na colina onde hoje está o centro velho, àquela época cercada de um lado por um imenso alagadiço a que deram o nome de Várzea do Carmo, formada pelo sinuosíssomo Tamanduateí. Daquele quase pântano restou-nos a medonha área do Parque D. Pedro II. Do outro lado da colina, corria o rio Anhangabaú, bem embaixo do atual parque que separa de um lado o Theatro Municipal e do outro o edifício da Prefeitura, o Largo do Patriarca e o Mosteiro de São Bento. Ué, mas não há um túnel embaixo do parque? Sim, o rio passa embaixo do túnel, por isso ele é interditado a cada tormenta que desaba sobre a cidade e, quando as bombas não funcionam, a água vai até o teto.

E quem trafega pelas avenidas 23 de Maio e 9 de Julho em geral não sabe que está a passear por cima do Itororó e do Saracura, rios que formam o Anhangabaú e que até o começo do século XX os paulistanos viam fluir por ali. Do ribeirão Pacaembu muitos sabem, por conta do piscinão construído sob a Praça Charles Muller. Mas ninguém conhece o ribeirão Sumaré, que lá está sob a avenida homônima. Causou horror semana passada a inundação do túnel Tribunal de Justiça - como pode, em pleno Itaim! Pois boa parte da Av. Juscelino Kubitschek foi construída sobre o córrego do Sapateiro, que sai do Parque do Ibirapuera em direção ao Pinheiros. Sob a Av. dos Bandeirantes corre o ribeirão da Traição, que por muito tempo foi divisa de São Paulo com o extinto município de Santo Amaro. A lista é grande: Tatuapé, Água Branca, Jaguaré, Direitos Humanos, Cambuci, tudo com avenida por cima. Bexiga, Lavapés, Ipiranga... Opa!

Dia desses passei de carona pela Av. Ricardo Jafet durante uma forte chuva, e acompanhei ao longo do trajeto Museu do Ipiranga - Complexo Maria Maluf a repentina transformação do córrego que acompanha a avenida no caudaloso rio que invadiu as pistas. A proprietária do veículo se assustou quando eu brinquei que seu carro acabara de ser batizado pelo rio da Independência. "Que rio da Independência, o Ipiranga? Aquele do grito de 1822?". Creio que aos moradores da região essa informação não cause espanto algum, mas já perguntei a meu alunos se eles conhecem o famoso regato, as respostas foram quase todas desanimadoras.

Quem atenta à letra do Hino Nacional Brasileiro, não deve fazer a menor ideia de que o Ipiranga de margens plácidas citado no primeiro verso hoje serve de escoadouro a tudo que é tipo de rejeito e tem seu concretado leito espremidíssimo entre as pistas de uma avenida congestionada e eternamente em obras. Francamente! Quando comento lá nas Minas com meus conterrâneos e familiares o que é o rio Ipiranga, o escândalo é inevitável, seguido da decepção.

Fosse este um país sério, fosse esta capital uma cidade séria, haveria um cuidado muito maior em lembrar aos cidadãos o fato importante que ali se deu. Pode discordar o leitor, dizendo que para isso ergueram ali o belíssimo Museu, junto com o Parque da Independência. E por isso vão deixar que o rio se torne uma vala horrível? Pior ainda é o trecho em que ele é margeado pela Av. Tereza Cristina. Terrível! Caberia ali um parque linear? Preservaria a memória do lugar, tornaria mais concreta ao cidadão a velha lição das aulas de História, evitaria que veículos transitassem numa área sujeita a inundação.

Pode esta parecer uma preocupação inútil em um país onde ainda sobram problemas a se resolver (Ah, a via é necessária para os deslocamentos, não se pode tirá-la de lá, como fica o trânsito?). Também não queremos inundações e desabamentos. Será mesmo? Reclamamos que ninguém exige a solução ou arregaça as mangas por pura falta de compromisso com o país, achamos um absurdo a inércia do Poder Público ante o colapso desta metrópole. Gozamos um feriado pelo aniversário da cidade, mas no fundo não nos importamos nem com a sua evolução, nem com as margens plácidas. A experiência passada, ao invés de fonte de aprendizado, é objeto de desprezo. O ciclo é vicioso.

Parabéns, São Paulo. Que doravante tuas comemorações possam ser menos melancólicas.