sábado, 8 de maio de 2010

Besouros que ainda não sabemos encontrar

Cheguei à avenida Paulista com antecedência de vinte minutos. Tanta precaução fora motivada pelo temor de enfrentar um congestionamento inesperado como o que causou meu atraso na semana anterior. Decidi aproveitar aquele quarto de hora com um saboroso café na companhia do Loyola Brandão. Saquei da mochila uma coletânea de crônicas suas e iniciei a leitura de "O raro besouro que abre portas", aberta ao acaso.

Narrativa singela de um encontro do narrador com um garoto que brincava na calçada com um besouro-cadeado. Lá pelas tantas, o cronista deixa escapar que estava em busca de um besouro que abrisse corações. Enquanto sorvia meu expresso deliciosamente amargo, refleti sobre aquela confissão; que coração ele tanto queria aberto? O de uma mulher ainda resistente a suas investidas? Ou o seu próprio, inescrutável? Seriam os de amigos próximos, vizinhos, moradores desta cidade que, se deixarmos, pode nos conduzir a um crescente isolamento? Reparei que, no balcão, alguns clientes usavam fones de ouvido. Na verdade, eu era o único dos quatro que não os portava.

Minha reflexão sobre o casulo em que os urbanoides nos envolvemos foi interrompida pela chegada de uma mulher a arrastar consigo a filhinha. Na outra mão, as compras na butique de grife. Dirigiu-se à atendente com artificial intimidade:

- Oi, amada, eu quero aquele seu café divino.

A funcionária mantinha a sobriedade como que acostumada àquele tipo de tratamento.

- Pois não. A senhora deseja puro ou com leite?

A criança tocou levemente a perna da mãe:

- Mãe, você vai comprar o chocolate?

- Linda, eu quero puro, agora me ajuda, ela quer um chocolate. Mas raciocina comigo, amada, é melhor eu levar o bombom ou um tabletinho?

- A senhora pode ficar à vontade para escolher.

- Mãe, leva o bombom.

- Quieta, deixa a mãe escolher! Amada, tá vendo só, ela insiste no chocolate. Sabe como é apetite de criança. Hoje ela não quer comer nada, amada, só almoçou porque prometi um doce.

- Aqui está o café da senhora.

- Ai, amada, esse cheirinho de café é uma coisa! Vou te dizer, linda, eu não fico um dia sem ele.

- Mãe, e o bombom?

- Sossega antes que eu te leve embora, hein. Amada, você tem adoçante? Você não acredita, linda, mas eu engordo só de pensar em açúcar. Amada, você me vê então o bombom?

- Pois não, senhora. Aqui está.

- Obrigada, amada!

E voltou-se à filha:

- Agora pegue o chocolate, pegue, e chega de doce por hoje.

Eu me flagrei incomodado com tanta mesura sem lastro, como se eu fosse aquela atendente. Ela já atendia outro freguês que se aproximou. Ao longe, notei a menina levada pela mãe. Uma segurava seu bombom quase sem alegria, a outra conferia frenética os novos casacos expostos na vitrine. E, tal como o Loyola, desejei naquele instante um besouro que abrisse corações.

3 comentários:

Anônimo disse...

Cara, tocante... Obrigado pela possibilidade de me apresentar uma reflexão.

Dr. Ricardo

Anônimo disse...

Os "besourinhos" existem... Você só precisa estar atento ao olhar por aí. De repente um deles cai na sua frente. :) Beijo

Patricia disse...

Cenas cotidianas são muito interessantes ao se tornarem alvo de reflexão. Mas, por não se tornarem é que são cotidianas.