segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Por que caminhos?

Alcançamos! À nossa frente, os derradeiros metros do caminho iniciado há certo tempo, ao fim dos quais nos aguarda o objetivo planejado e - oh, Deus! - a possibilidade de novas estradas a trilhar. A que lugares nos levarão? Por que terras hão de nos conduzir? Angustia-nos o desconhecimento do outro lado daquela serra que, majestosa e desafiadora, se ergue ao término desta reta final.

O que encontraremos lá adiante?
Um dia imaginamos uma terra acidentada, cujas elevações se sucedem espremendo os regatos, que de repente despencam em belíssimas cachoeiras, mas por lá serpenteiam caminhos de rampas bastante íngremes.

Por vezes é uma terra triste, que contempla o brilho do astro-rei em raros dias, mergulhada em constantes brumas ou encoberta por cinzentas nuvens de chuva.

Por outras, uma terra bastante povoada, onde se erguem belos monumentos e, vez ou outra, uma obra desengonçada, por entre os quais se vive o quotidiano frenético de inúmeras tarefas.

Também vimos uma iluminada terra de planícies úberes, quem sabe pouco explorada, cortada por rios de curvas suaves, através da qual vencemos as distâncias sem maiores sobressaltos.

Perdemo-nos em mil conjecturas. Como insistimos neste vão exercício para a mente, afiadíssima faca para o estômago!

Conheceremos o outro lado ao atingirmos o patamar mais alto, e vislumbraremos, em todas as direções, os caminhos por que podemos seguir. A cada incremento registrado no hodômetro, aumentamos nossa bagagem. Se desconhecemos o devir, temos nossa experiência e a companhia de quem se importa conosco, de quem está a postos para compartilhar não só a alegria diante de magnífica paisagem, como também a ansiedade que turva nossa tomada de decisão.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Multar para educar ou para arrecadar?

Nos últimos dias, ouvi queixas de dois professores sobre a fiscalização recém implantada na cidade para multar os motoristas que desobedeçam ao sinal vermelho nos cruzamentos durante a madrugada. Um professor não conhece o outro, o primeiro explicitara ira, o segundo construiu fina ironia. Todavia tinham em comum a incompreensão da postura do Poder Público para com os motoristas.

Quem fura, paga. Quem não fura...
Até pouco tempo atrás, a própria Polícia Militar recomendava que se evitasse permanecer parado nos cruzamentos entre a meia-noite e as seis da manhã, a fim de se evitar abordagem de assaltantes. Mesmo que o motorista tivesse o azar de ser flagrado por algum agente da Companhia de Engenharia de Tráfego "furando o sinal", dificilmente ele receberia multa. Este ano, em vários cruzamentos foram instalados equipamentos que registram os carros que desobedecem ao sinal de parada, mesmo nos horários de pouco movimento e maior risco de assalto. A multa é de R$191,54. Agora o motorista se vê em outra encruzilhada além daquela por onde trafega: ou ele reza para que o sinal verde apareça a tempo de sua vida manter-se a salvo, ou reza pela benevolência de quem julgar procedente o recurso que ele queira impetrar.

Ontem eu me lembrei da polêmica mudança de horário de funcionamento das feiras livres ordenado pela Prefeitura de São Paulo no início do ano enquanto conversava com um amigo sobre o que deve motivar o Poder Público a usar um instrumento punitivo como as multas. Os feirantes foram obrigados a desmontar suas barracas até as 12:30, sob pena de serem multados e até suspensos. Ninguém entendeu o intento da administração municipal com a medida, que ocasionou reclamação tanto de compradores - que principalmente nos finais de semana não queriam se apressar em fazer a feira - como de feirantes - que gastam parte razoável do tempo para montar e desmontar suas bancas. Como de fato nada justificava a mudança e os protestos eram muitos, o prefeito teve de rever a determinação.

Além desses dois exemplos, outros bem servem para mostrar como o Poder Público subverte a finalidade da multa, empregada meramente como um instrumento de arrecadação, em vez de um mecanismo que induza o comportamento dos cidadãos. Trata-se de uma postura tão consolidada em nosso país que eu a imaginava com origem bastante antiga. Será que seguidas gerações foram moldadas culturalmente para se habituar a esse paradigma?

Nada como uma visita aos sebos para aumentarmos nosso cabedal. A um despretensioso folhear de exemplares amarelados pelo tempo e encardidos de poeira, acabamos por descobrir algumas curiosidades da vida política brasileira. Ano de 1556. Vila de Santo André da Borda do Campo, fundada 3 anos antes por  João Ramalho, localizada próxima à vila de São Paulo. As decisões da vila eram tomadas não por João Ramalho, mas pelos vereadores reunidos na Câmara ou Casa do Conselho. À época, as vilas não tinham prefeito, esse cargo só surgiu no Brasil, nos moldes que conhecemos hoje, em 1930. O Conselho era presidido por um juiz, denominado Juiz Ordinário ou juiz de dentro, espécie de prefeito naquele período. Segundo Viriato Corrêa, no livro Terra de Santa Cruz: Contos e Crônicas da História Brasileira, o ordenado do juiz ordinário da vila de Santo André era de 800 réis por ano, o que lhe permitia uma vida de príncipe em comparação aos demais moradores. Os vereadores não recebiam salário, mas o Conselho não se reunia com frequência, passavam-se semanas, até meses, entre uma sessão e outra. Todavia, se um vereador não comparecesse, era multado em 1 tostão, o equivalente a 80 réis.

Ou seja, o vereador que se ausentasse pagava, em 1556, multa equivalente a 10% do ordenado anual do juiz ordinário. À primeira vista, tem-se a impressão de que, na vila de Santo André, zelava-se com muito empenho para que os vereadores cumprissem bem suas responsabilidades. Mas havia outras intenções camufladas por trás de tanto zelo.

Na vila de João Ramalho,
nem o juiz tinha salário
para pagar as multas.
A vila era pobre, o ordenado dos moradores era muito apertado. Contudo, "o leitor se escandaliza diante da disparidade das multas, comparada com o valor do dinheiro naquela longínqua quadra quinhentista". As menores multas eram no valor de 100 réis. O forasteiro que entrasse na vila com seus pertences para nela morar sem licença pagava 500 réis. O morador que se retirasse da vila sem licença pagava 500 réis ao voltar. Era necessário recolher o gado ao curral ao fim do dia para evitar que ele danificasse as roças ou que fosse atacado pelas tribos que se opunham à colonização; o morador que não recolhesse o gado pagava 100 réis por cabeça. Como os lavradores saíam para trabalhar na roça, as crianças e os enfermos ficavam sozinhos em casa, expostos, portanto, aos ataques inimigos. A Câmara, assim, designava turmas de lavradores que iam para a roça e turmas que ficariam guardando a vila; quem desobedecesse ao revezamento era multado em 150 réis. Relembrando: o maior salário da vila, o do juiz, era de 800 réis por ano.

Chama a atenção do autor não o rigor das leis, que eram necessárias frente às ameaças de toda natureza que a colonização enfrentava naqueles seus primórdios. O que se destaca é "o extorsivo vulto das multas que se impõem ao povo". Ao final, sua opinião é incisiva: "Tem-se a impressão de que a municipalidade, não podendo arcar com os encargos normais por falta de numerário, quer arrancar, seja como for, o pêlo do povo. [...] Se se não extorquir o povo, os cofres municipais nunca terão dinheiro."

Câmara de Vereadores de S.Paulo
Uma rápida busca na internet nos informa que, em abril de 2009, na cidade de São Paulo, o salário mensal do prefeito era de 12 mil reais, e o de vereador, 7 mil reais. As sessões ordinárias da Câmara Municipal de São Paulo acontecem às terças, quartas e quintas. A multa por ausência do vereador equivale a 1/20 do salário, conforme Artigo 124 do Regimento Interno. Duas contas rápidas e concluímos que, em 2009, o vereador que se ausentasse pagava multa correspondente a 0,2% do ordenado anual do prefeito.

Ora, a Câmara tem sessões 3 vezes por semana, o que dá algo entre 13 e 14 sessões por mês. O desconto de 1/13 guarda apenas 180 reais de diferença para o de 1/20, é pouco frente ao salário de 7 mil, que não considero absurdo. Absurdo é não haver preocupação sequer em se adotar uma medida coerente para quantificar a multa ao vereador que se exime de sua obrigação.

É lamentável constatar que não apenas a municipalidade permanece aplicando multas como forma de saciar seu furor arrecadatório, como também a boa conduta dos vereadores deixou de ser merecedora de rígida cobrança por parte da sociedade. Para fins de arrecadação, há impostos e taxas. O caráter da multa é mais educativo ou punitivo, como forma de impedir atitudes consideradas danosas ou indesejáveis do ponto de vista social. Pioramos desde João Ramalho. Hodiernamente, quando se multa para "educar" nossos representantes, a mão é suave como uma carícia.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Noites altas

Naquele tempo, eram os pés de moleque que suportavam nossos pequenos passos, débeis pela angústia e de destino certo pelo hábito. A luz amarela despejada do alto dos postes destacava o resignado desfile de sombras nas paredes caiadas que emolduravam a ladeira. O silêncio daqueles ares frios abafava sons escapados de cada veneziana fechada, ecos da inquietação capitaneada por quotidianas lembranças amargas. Um abraço curto e fugidio, o trato ignominioso, as acusações pérfidas, gestos ferinos.

Naquele tempo, a torre elevava-se a alturas que impressionavam aos velhos e aos meninos. Temíamos todos a sinfonia do seu inalcançável campanário, trovões que regravam mais que nossas comezinhas tarefas, invadiam-nos, sem escusas, a nos dizer que nada se mantinha oculto. Aos pés da torre, contemplávamos as frágeis construções acomodadas sobre o mar de morros, encaixadas no sinuoso vale rasgado pelas águas barrentas que os antigos julgaram dignas do santo nome protetor daquela terra, onde tantos se atiravam a saciar apetites torpes.

Naquele tempo, enleavam-se nossos sentidos com a brisa de dama da noite, com a quietude pétrea, com o piar das corujas. A longa escadaria apartava-nos das surpresas que nos espreitavam em cada esquina. Agora não há mais precisão daqueles muitos degraus. Conheci outras serras, ouvi o dobrar de outros bronzes, enquanto à noite ainda te afliges entre os mesmos gigantes.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Os frutos de cada estação

A tarde de hoje seguia modorrenta e a reunião apática. Durante o providencial intervalo para o café, tomei a esmo uma das revistas de variedades dispostas sobre a mesinha de centro da recepção. Interessei-me ao ver que um dos artigos era assinado por uma amiga, que expôs em algumas linhas o que significou pra ela chegar aos 30 anos. Nada do tom jocoso com os clichês relativos às preocupações femininas nessa etapa da vida, nada da sutil amargura por não ter realizado os planos que almejara em sua adolescência. Ela registrava apenas o doce sabor do contínuo aprendizado do qual só nos damos conta vivendo cada fase da vida.

A reunião terminou e pude conferir os sms que recebera durante a tarde cinzenta. Em um deles, um amigo lembrou-me de uma troça dos nossos tempos de graduação, tempos esses não tão distantes assim, não sou tão velho quanto o uso do substantivo troça pode sugerir ao leitor. Como não entendi a brincadeira na hora, perguntei do que se tratava, ao que ele me respondeu estar apenas relembrando "os bons(?) tempos". Cogitei em escrever de volta "É, bons tempos que não voltam mais", mas a remeter-lhe um lugar-comum, melhor seria recolher-me ao silêncio. O diabinho sugeriu-me "Como assim bons se era uma dureza só?", o que me pareceu meio egocêntrico. Julguei que um simples "Ah, meu amigo, eram bons tempos" expressaria, na brevidade de um sms, o sentimento de que, não obstante as adversidades e as angústias, ganhamos muito e desfrutamos o que, dentro do possível, tivemos vontade.

Ao chegar em casa, notei na caixa de correio uma resma de papeis à minha espera. Em meio às corriqueiras contas a pagar, muita propaganda de candidatos a deputado. Embora já tenha definido em qual candidato à Assembleia votar no próximo domingo, resolvi ler os dois folhetos que relatavam a atuação dos candidatos na atual legislatura. Nisso me detive em frente à minha porta, santinhos à mão esquerda, chaveiro na direita. Despertei daquilo com passos vindos da escada. O vizinho chegou e ainda me viu entretido com os santinhos. "Então abarrotaram sua caixa também?", "Eles precisam dar um fim nisso até amanhã, não é?", "Mas esse inferno termina domingo". Concordei com um "Graças a Deus!", e na hora atentei para meu equívoco. Em outros tempos, também não tão distantes assim, era um anseio de quase todos no país que vivêssemos o clima de uma campanha eleitoral, as discussões abertas, o questionamento de propostas e, principalmente, a livre escolha de nossos representantes. Não havia a profusão de santinhos, contudo vivia-se sob outras restrições.

Os 30 anos são piores que os 20? A vida universitária é boa se comparada à fase pós-formatura? As campanhas eleitorais são intoleráveis a ponto de darmos "Graças a Deus" quando se encerram? Não podemos nos esquecer de que cada época nos reserva asperezas, assim como cada estação seus frutos. Aproveitemos, pois, o fruto que ora colhemos, obtido a partir de um semear de muito sacrifício.

sábado, 8 de maio de 2010

Besouros que ainda não sabemos encontrar

Cheguei à avenida Paulista com antecedência de vinte minutos. Tanta precaução fora motivada pelo temor de enfrentar um congestionamento inesperado como o que causou meu atraso na semana anterior. Decidi aproveitar aquele quarto de hora com um saboroso café na companhia do Loyola Brandão. Saquei da mochila uma coletânea de crônicas suas e iniciei a leitura de "O raro besouro que abre portas", aberta ao acaso.

Narrativa singela de um encontro do narrador com um garoto que brincava na calçada com um besouro-cadeado. Lá pelas tantas, o cronista deixa escapar que estava em busca de um besouro que abrisse corações. Enquanto sorvia meu expresso deliciosamente amargo, refleti sobre aquela confissão; que coração ele tanto queria aberto? O de uma mulher ainda resistente a suas investidas? Ou o seu próprio, inescrutável? Seriam os de amigos próximos, vizinhos, moradores desta cidade que, se deixarmos, pode nos conduzir a um crescente isolamento? Reparei que, no balcão, alguns clientes usavam fones de ouvido. Na verdade, eu era o único dos quatro que não os portava.

Minha reflexão sobre o casulo em que os urbanoides nos envolvemos foi interrompida pela chegada de uma mulher a arrastar consigo a filhinha. Na outra mão, as compras na butique de grife. Dirigiu-se à atendente com artificial intimidade:

- Oi, amada, eu quero aquele seu café divino.

A funcionária mantinha a sobriedade como que acostumada àquele tipo de tratamento.

- Pois não. A senhora deseja puro ou com leite?

A criança tocou levemente a perna da mãe:

- Mãe, você vai comprar o chocolate?

- Linda, eu quero puro, agora me ajuda, ela quer um chocolate. Mas raciocina comigo, amada, é melhor eu levar o bombom ou um tabletinho?

- A senhora pode ficar à vontade para escolher.

- Mãe, leva o bombom.

- Quieta, deixa a mãe escolher! Amada, tá vendo só, ela insiste no chocolate. Sabe como é apetite de criança. Hoje ela não quer comer nada, amada, só almoçou porque prometi um doce.

- Aqui está o café da senhora.

- Ai, amada, esse cheirinho de café é uma coisa! Vou te dizer, linda, eu não fico um dia sem ele.

- Mãe, e o bombom?

- Sossega antes que eu te leve embora, hein. Amada, você tem adoçante? Você não acredita, linda, mas eu engordo só de pensar em açúcar. Amada, você me vê então o bombom?

- Pois não, senhora. Aqui está.

- Obrigada, amada!

E voltou-se à filha:

- Agora pegue o chocolate, pegue, e chega de doce por hoje.

Eu me flagrei incomodado com tanta mesura sem lastro, como se eu fosse aquela atendente. Ela já atendia outro freguês que se aproximou. Ao longe, notei a menina levada pela mãe. Uma segurava seu bombom quase sem alegria, a outra conferia frenética os novos casacos expostos na vitrine. E, tal como o Loyola, desejei naquele instante um besouro que abrisse corações.